terça-feira, 14 de abril de 2009

Bordalo, o seu tempo e a sua arte


2005

Casa Roque Gameiro


No 1º centenário da morte de Rafael Bordalo Pinheiro


1846 é, em Portugal, um ano de crise económica, o ano da Maria da Fonte anti-cabralista, o início do ministério de Palmela e da Patuleia. É um ano que simboliza bem o século XIX português. Um século de mudança e contradição. Aliás, mudança e contradição são elementos fundamentais para se perceber este século em todo o lado (em especial na Europa), não só em Portugal. Ao longo do século as transformações económicas, ligadas à Revolução Industrial efervescente vão provocando tragédias sociais, bem evidenciadas pelas lutas operárias, pelo aparecimento de utopias sociais e ideologias socialistas que lutam contra modelos de estados nascidos das revoluções liberais. E a arte bem acompanhou estes fenómenos económico-sociais e políticos. Um romantismo nacionalista, historicista, nascendo das ideias setecentistas de um Herder ou, especialmente, de um Rousseau (entre outros), tornava-se um bastião da burguesia triunfante, enquanto um realismo bem politizado, cada vez mais se assumia como paladino estético dos socialismos.Mas em Portugal, mudança e contradição são termos que adquirem facetas especiais. Portugal pagava o preço de séculos de uma política económica que sempre fragilizou a sua burguesia e fortaleceu a nobreza, anatematizando quem tentou modificar essa situação, caso do Conde da Ericeira ou o Marquês de Pombal. Ao contrário de outros países em que a nobreza imita a burguesia, no século XIX português é a burguesia que quer ser nobreza, não só nos títulos como na função. E é vermos românticos como Garrett, a por em causa o progresso e realistas assumidos como Eça a enredarem-se (de forma sublime, aliás) em ambientes e temas românticos… É essa uma das contradições do século XIX português. Como dirá Oliveira Martins, Portugal será uma granja e um banco, falta a oficina. Faltam as condições vivenciais e a massa proletária para que seja um tempo mais congruente!
1846, a 21 de Março nasce Rafael Bordalo Pinheiro, português, num tempo português de mudança e contradição. Mas um dos portugueses que melhor percebeu e aproveitou o seu tempo. Rafael nasceu no seio de uma família de artistas. O seu pai, Manuel Maria Bordalo Pinheiro iniciou-o na pintura, tal como a Columbano, o seu irmão que se virá a afirmar como um dos seus maiores cultores em Portugal. Contudo, o génio e o espírito de Rafael não se atinham a uma única forma de expressão. E procurou outras, primeiro o teatro, depois o desenho, a caricatura, a aguarela, a ilustração, a decoração, a cerâmica! Uma extraordinária fecundidade criativa, uma capacidade de trabalho impar em áreas diversificadas, conferem a Rafael Bordalo Pinheiro o mérito de ser considerado um dos maiores artistas da sua geração. E é na caricatura, primeiro e na cerâmica que Bordalo encontra a sua capacidade expressiva de eleição.No que diz respeito à caricatura, começou em 1869 com o álbum humorístico O Calcanhar de Aquiles. Depois vêm os jornais, A Berlinda, a Lanterna Mágica onde nasceu o Zé Povinho, personagem signíca da sua obra, o Binóculo, o Mappa de Portugal, o António Maria, Os Pontos nos ii e, por último A Paródia onde irá desenhar até morrer. Isto sem contar com os jornais em que colaborou ou fundou nos quase 4 anos que esteve no Brasil. Nestas páginas perpassam os anseios e muitas das ideias políticas da geração de 70, através do riso e da ironia. É toda a vida política e económica do país, deveras triste e anquilosada que é surrada até à medula. A espaços muito próximo do realismo francês, Bordalo dá vida a imagens de valor imortal, como sejam a “porca da política”, o “papagaio” da retórica parlamentar, a “galinha choca” da economia ou o “grande cão” da finança, Afinal figuras ainda hoje vivas e bem vivas,As experiências com cerâmica datam de 1882, colaborando com a sua irmã Maria Augusta. Mas em 1883 outro dos seus irmãos, Feliciano Bordalo Pinheiro e Felisberto José da Costa lançam o projecto de uma Fábrica de Faianças das Caldas da Rainha. Os estatutos aprovados a 30 de Junho de 1884, implicam Rafael como director artístico. Em Setembro desse ano, inicia a nova fábrica a sua secção dedicada a materiais de construção e em Junho de 1885 a secção de faianças artísticas. Apesar da vida conturbada da fábrica, esta vai ser um alfobre de criatividade extrema. Essa produção vai ser marcada por três fases. Uma primeira, profundamente naturalista, até 1889, uma segunda em que envereda por caminhos mais internacionalizantes, no fundo românticos, abraçando o historicismo, com peças que vão de um classicismo renascimental, passando pelo neo-manuelino até a um rocaille tardio. Dedica-se também à Arte Nova e aos exotismos orientalizantes. A terceira fase, para além de uma continuidade da anterior e depois de uma fase de peças nacionalistas ligadas ao ultimatum de 1890, avança para uma produção mais folclórica e mais ligada à sua obra de caricaturista. É esta a faceta que o vai ocupar até à sua morte em 1905.
E é na cerâmica que vamos encontrar uma ligação deste artista à Amadora. Um dos primeiros accionistas da fábrica de Bordalo será Justino Guedes, para o qual Rafael fará em 1890 o projecto de decoração de um pavilhão de vendas da sua litografia. Era Justino Guedes irmão de Alfredo Roque Gameiro, que com ele trabalhava. Não é de espantar que Roque Gameiro encomende na fábrica das Caldas vários elementos cerâmicos para a casa que estava a construir na Venteira, em 1898. Assim, para além de telhas, preserva-se hoje nessa casa várias peças decorativas de Bordalo, em especial a esfera armilar na cumeeira da casa e, sobretudo, os azulejos da sala de jantar, com o espantoso padrão de nabos e remate de espigas, este inspirado em azulejos do Palácio Nacional de Sintra.
Rafael Bordalo Pinheiro morre a 23 de Janeiro de 1905. No número 107 da Paródia, a morte do seu fundador é anunciada, com direito a separata. E, curiosamente, é um desenho de Roque Gameiro que celebra a vida do mestre, representando Bordalo a modelar uma jarra. Concerteza um desenho que terá agradado ao Zé Povinho e à Maria Paciência, agora órfãos!


Publicado no Notícias da Amadora de 19 de Maio de 2005

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